Babys.

Tribulação (Capítulo 7)

 Tribulação 

Capítulo 7 

    Uma dor profunda se espalhava pelo meu corpo. Sentia minha visão entorpecida como se eu estivesse drogado, e por algum motivo meu corpo era balançado de um lado para o outro, em um ritmo enjoativo.  
    Minha audição estava trancada, então eu não escutava muito bem. Minha boca tampada me deixava ansioso e meus braços e pernas amarrados incomodavam. Meu estomago está dolorido, e eu não acredito que consiga suportar muito mais tempo consciente com a fome que estou.  
    Gostaria de poder ter um Andarilho junto a mim, ao menos isso eu sei que faz parte da minha rotina. Ao menos dessa forma, eu conseguiria me sentir no controle novamente, sentir que as coisas voltaram minimamente a normalidade. Queria poder voltar ao restaurante, ver Rafaela, Camila, Eduardo, Victor, e até a droga do novo estagiário.  
      Forço meus olhos a vasculharem o lugar onde estou, e consigo identificar que é um quarto. Não a muito nele, além da cama onde estou, e um pequeno armário ao lado. Mexo meus pulsos atrás das costas e percebo que o que me prende são cordas muito firmes e bem colocadas, fazendo meus pulsos doerem. Meus pés também estão presos com o mesmo material. 
    Olho para a porta a minha frente, e tento aguçar minha audição para tentar captar algo, mas não preciso fazer muito esforço, pois no mesmo momento a porta é aberta.  

    O mesmo garoto que lembro de ver na porta da casa de Eduarda, olha em minha direção. 
     - Otuna, me tsudo caru?* - Ele diz, mas ainda é impossível decifrar o que ele fala.   
     Então sem esperar uma resposta ele caminha em minha direção, e arranca a o lenço da minha boca, fazendo e puxar o ar com força para meus pulmões. 

   O olho, ainda respirando ofegante, e ele se agacha a minha frente, apontando o dedo indicador para o centro de seu peito.  
    - Ateca. - Crispo as sobrancelhas e balanço a cabeça em negação.  

    Ele toca novamente o peito, apontando para si.  

    - Ateca. - Fala, novamente. 
    - Você... você se chama Ateca? - Pergunto, e ele concorda. 
   - Ateca. - Concordo então. 
   - Ok, Ateca. 
   Dessa vez, seu dedo encosta em meu peito. 
    - Letério me Vikfar. - Olho para onde ele encosta.  
   - Não, eu... Eu me chamo Arthur, A-R-T-H-U-R, Arthur. - Agora é a vez de ele negar, e bater novamente o dedo no meu peito. 
     - Letério me Vikfar. - Reviro os olhos, e apenas concordo. 
    - Tá, tá, sou esse cara aí então.  
   Ele então se levanta, e vira meu corpo de bruços, deixando meu rosto contra o colchão.  
     - Ei, ei, ei que porra você tá fazendo? - Minha voz sai abafada, e sinto meus pulsos serem soltos, e logo em seguida meus pés também.  
    Ao tentar trazer meus braços para frente, uma dor laciante me toda, e para o movimento.  

   - Caralho, quanto tempo me deixaram assim? Porra, eu não consigo mover os braços. - Digo com os olhos fechados, e ainda na mesma posição.  

    Sem aviso, Ateca puxa meu braço e solto um grito, quando ele me ponhe de costas para o colchão. 
    - Você é um desgraçado. - Ele não parece entender minha fala, então apenas o mostro o dedo do meio.  
    Giro os braços, ainda me acostumando com a dor. Massageio os calcanhares e estalo o pescoço.  
      - Então, porque me mantiveram aqui? - Ele me olha, mas não parece realmente prestar atenção no que digo.  

    Suspiro e me levanto então, estalando as costas, e o olhando.  
   - Bem, se você não vai dizer nada, eu vou sair, e ver onde caralhos eu estou. - Ao dar o primeiro passo, ele se coloca a minha frente e nega com a cabeça. 

     - Meteri omuno caru lita.* - Seguro o colarinho de sua roupa e o aproximo de mim.    
    - Eu não entendo, porra nenhuma que você fala. - Ele me olha, piscando um pouco desnorteado.  
     A porta é aberta novamente, e o mesmo amigo dele aparece nela, e me olha surpreso.  
     - Ataca, okuto menito varica? - Ele fala alguma coisa pro colega a minha frente, que o olha de trás.  
    Sem esperar o responder, o cara na porta puxa o que parece uma flauta, a põe na boca, assoprando algo em minha direção. Rapidamente, coloco Ateca a minha frente, que recebe o pequeno dardo em sua nuca, desmaiando automaticamente. O corpo mole cai para frente, e sem perder tempo, o jogo para o cara na porta, que tenta o pegar, mas antes que faça, levanto meu punho o golpeando com força no queixo, fazendo também desmaiar.  
    Massageio minha mão, sentido uma dor nos dedos. Passo pelos dois e sou recebido pelo sol do dia. Tampando a visão, continuo andando até perceber que estava em um pequeno barco, e quando meus olhos focam, sinto meu coração bater mais rápido, e engulo em seco.  
     Não havia literalmente nada ao nosso redor além de água, e mais água.  

    - Caralho... 
   Subo para a parte de cima do barco, onde ficava o leme, apertando os olhos e não a nada que eu consiga enxergar.  
   Subitamente, arregalo os olhos, e algo em minha mente parece se encaixar.  
   “A garota, os dois caras estranhos, mar, ilha, Perseguidores... Porra, eles estão me levando diretamente para o inferno” 

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    O barco se mexia em uma velocidade baixa, e pela posição do sol, conseguia dizer que deveria ter passado do meio dia já. 
    Eu particularmente não sabia nada sobre barcos, mas tinha ideia de que o leme virava, e era isso que eu precisava no momento, sair da direção que estávamos indo.  

    - Caralho, como isso é difícil. - Digo girando volante de madeira com dificuldade. Aos poucos o barco vai saindo da rota. 

Ouço um barulho atrás de mim, e viro o rosto, tendo a imagem do rapaz que dei um soco no rosto, me olhando, e com muita raiva.  
    - Marujo! Que bom que acordou, eu preciso de uma ajuda aqui, e esse leme é- Antes que conclua a frase, ele põe novamente a flauta na boca, e assopra. Me abaixo automaticamente, e o encaro já se preparando novamente. 

    - Pare com essa merda! - Ele leva o pequeno tubo a boca, e antes que faça, corro em sua direção pulando e o abraçando pela cintura, jogando nós dois no andar de baixo. Me sento em cima de si, retirando da sua mão o objeto, e assoprando em seu pescoço. 
    Vejo o pequeno dardo o atingir, e ele arregalar os olhos em minha direção.  
    - Boa noite Ataca. - Ele não responde, seus olhos se fecham e ele apaga.  
   Olho para a porta do quarto atrás de mim, e vejo o outro ainda no chão.    
   - Não, aquele é o Ataca né? Qual seu nome mesmo? - Aponto para o cara desmaiado abaixo de mim, não recebo uma resposta. - Bem, foda-se de qualquer jeito. Vocês devem ter um mapa por aqui né?  
    Me levanto, e volto para o quarto, mexendo em tudo lá dentro a procura de um guia de como voltar para o continente.  
    Saindo do cômodo sem achar nada, volto para a cabine principal, e procuro nas gavetas ali. Na última delas encontro um mapa velho apenas com a localização da ilha, e os continentes ao redor.  
    A ilha está circulada com uma tinta preta. Estendo a folha a minha frente, tentando me guiar.  
    - Bem, se o bico do barco está apontado para essa direção, estão, vamos voltar para trás.  
     Viro com dificuldade a ponta do barco e acelero na potência máxima que consigo.  
     - Quanto tempo será que levamos para chegar aqui? Que dia será hoje? - As perguntas rodavam minha mente me deixando apreensivo sobre o que fazer.  
     “Será que já se passaram dias? Pelo que me lembre, essa ilha fica no ponto Nemo do oceano, e isso deve ser bem longe de qualquer centro de terra. Porra, quanto tempo vou ter que passar nesse barco até encontrar alguém?”  

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     Já fazia em média três horas que eu estava andando com esse barco. Nesse meio tempo, amarrei os dois colegas que estavam comigo, e achei mais alguns dos dardos tranquilizantes. Encontrei uma bussola no bolso de um deles, e em uma cabine na frente encontrei comida e mais gasolina.   
     Ao longe avisto um pedaço de ilha, e forço mais o motor.  
    - Marinheiros, terra a vista! - Grito, sentindo depois de muito tempo, um pouco de felicidade.  
 
    Ao me aproximar mais, percebo que era um pequeno porto. Para o barco em um cais, onde havia um senhor arrumando uma pequena bateira.  
     - Olá, o senhor pode me ajudar? - Desço, e me aproximo do idoso que se vira a ouvir minha voz.  
    - Olá meu filho, o que precisa? - Ele é simpático, e exala um cheiro muito forte de peixe. Reparando agora, tudo aqui fede a peixe.  
     - Algumas coisas, onde estou, que horas são, que dia é, e como eu chego em Costa Rica? - Ele parece um pouco assustado com minhas perguntas. Ficaria ainda mais se soubesse que tem dois caras desmaiados amarrados no barco.  

     - Oh as horas, meu filho eu não ando com relógio, um momento só. - Ele então se afasta chegando perto de uma cabana no fim do cais, e volta a mim.  
     - São agora duas e quarenta e cinco, e hoje é dia vinte de maio. E aqui é o porto de Ayora. - Se passou apenas um dia então.  
     - Ah sim, entendi. E como eu faço para chegar na Costa Rica, em que direção vou?  
     Ele põe as mãos na cintura, e olha pra os lados, tirando o boné com uma mão e coçando a cabeça.  
     - Bem, você pode pegar reto e seguir a noroeste do mapa, e vai seguindo infinitamente, olha filho é quase um dia de viagem, saindo agora. - Ele faz uma pausa e coça o queixo. - Vai chegar lá só de madrugada. 
    Concordo com a cabeça. 
    - Ah, espero só um momento, já volto. 
  Corro para meu barco e pego o mapa e a bussola que aviam lá, levando até o senhor, e pedindo para ele me guiar, e dizer em qual direção da bussola deve seguir. Antes de ir embora, passei em uma pequena lojinha, e com um pouco de conversa consegui com que o vendedor me desse um relógio.  
   Sai da costa lá pelas três e meia, e pela distância no mapa, talvez o senhor esteja certo que eu vá chegar somente durante a madrugada.  
   Mesmo que por pouco eu tivesse conseguido sair de toda aquela situação, havia um sentimento em mim que não me deixava fechar os olhos, um medo na espinha que subia e me arrepiava, havia um medo dentro de mim que eu podia sentir me consumindo.  
      - Porra, eu to precisando de uma transa.  
    Minha cabeça começava a doer, e o sol queimava meus braços.  
    “Esses caras a essa altura já devem saber onde eu moro, e não sei posso voltar para casa. Não tenho nada aqui comigo. Preciso achar algum lugar para me esconder.” 
     O mar era amplo a minha frente, e eu nunca imaginei que algum dia estaria nessa situação. Em um barco, com dois caras de uma ilha bizarra presos e desmaiados em um quarto, e pensando onde me esconder para sobreviver.  
    Eu realmente acreditei que a parte mais estranha da minha vida era ver criaturas sombrias enormes, mas parece que tudo que é ruim sempre pode piorar. Nos últimos dias passeis por mais situações de vida ou morte, e experiencias malucas, do que minha vida toda, e nem é meu aniversário ainda.  
    O vento batia forte contra meu rosto, e eu fecho os olhos por alguns momentos aproveitando a brisa, e respirando fundo.  
    Fico pensando no que Victor faria para me ajudar. 
   “O idiota provavelmente pegaria o primeiro barco que visse, e tentaria vir me salvar, e se conseguisse arrastaria Rafaela junto... Rafaela...” 
     - Rafaela! Porra, ela tá viva ainda! - Havia esquecido completamente da garota. Ela não tem envolvimento nenhum com isso, e talvez seja um pouco de egoísmo usar isso, mas agora tudo que preciso é de um lugar para me esconder, e o que melhor do que alguém que mora no subúrbio de São José.  

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     Já eram por volta das duas e meia da madrugada, e eu conseguia ver a costa da cidade aos poucos. Pelo mapa, se eu segui o caminho certo, devo ter chegado em Jacó, que fica a apenas duas horas de São José. Acelero mais o motor, e respiro fundo. 

Chegando em terra, só preciso de uma carona, e isso definitivamente é o menor dos meus problemas.” 

 

       Paro o barco em uma quebrada de água, e antes de sair, injeto novamente um dardo em cada um dos nativos que ainda dormiam. 
    - Não sei se isso vai mata-los, mas o que para vocês é perda pra mim é lucro.  
   Improviso uma mochila, e pego alguns poucos alimentos, saindo do barco me afastando dali. Assim que me aproximo da rua, sinto meu corpo relaxar minimamente, ao ouvir sons de músicas saindo de bares, algumas poucas pessoas estão na praia e outras caminham pela calçada.  
    Vejo um grupo de colegas se aproximando de um carro, e olho para a minha roupa.  
    “Calça preta, e uma blusa da mesma cor, ambos em um péssimo estado. É não é a melhor aparência, mas bem, eu estava na ‘praia’” 
     - Opa? Gente, eu tava precisando de uma ajuda, vocês são daqui?  
     São apenas dois, um é alto e parece ter uns 19 anos, e o outro é da minha altura, parece ter a mesma idade do amigo.  
    - Cara, não. Viemos de São José em uma viagem, estamos voltando agora. - O mais alto diz. “Bingo” 
    - Você é de São José?  
    - Sou sim, Arthur, prazer.  
   Os dois me cumprimentam, e parecem à vontade.  
    - Minha carona foi embora mais cedo, e como segunda eu não trabalhava decidi ficar mais um dia, mas to sem grana pra voltar. Teria como eu pegar uma ida com vocês?  
   O mais baixo me olha, e cutuca levemente o mais alto, que vê algo no celular. 
   - Claro, porque não.  
   Ambos concordam, e começam a entrar no carro. 
   - Porra valeu, devo uma pra você.  
   - Deve mesmo, quase duas horas até lá. - Diz o mais baixo, que sentou no banco do passageiro na frente. - Me chamo Marco.  
    Aquele nome me traz um Déjà vu, e sorrio apertando sua mão estendida.  
   - Sério? Primeira pessoa que conheço com esse nome. - Seu aperto é firme, e seu amigo liga o carro.  
   - Eu me chamo Abel, se você nunca ouviu o nome dele, o meu não deveria nem saber que existe.  
    Nos três soltamos uma gargalhada, e eu concordo.  
   - Realmente, nunca ouvi esse nome. - Digo, relaxando sobre o banco, e olhando pela janela.  
    - Bem, bora pra casa.  
   - É, casa... - Minha fala saiba baixa a ponto de nenhum dos dois ouvirem. Sinto então meus olhos relaxarem, e antes que possa perceber, eu já havia dormido.  
 
     - Ei, Arthur, levanta aí.  
      Acordo assustado, e olhando para os lados, vendo que ainda estou dentro do mesmo carro de ontem.  
    - Tudo bem? - Olho para Marco no banco, e concordo, passando a mãe pelo rosto.  
    - Já chegamos? - Pergunto, esticando os braços, e ajeitando a roupa.  
   - Tamo quase no centro da cidade, o Abel mora lá. - Ele diz, e aceno com a cabeça. 
    - Ah, OK. Eu fico por lá mesmo, minha casa é perto. - Minto. Conseguiria me localizar lá, e poderia arrumar um jeito de falar com Rafaela.  
    Pela janela já conseguia reconhecer onde estava, e uma sensação de conforto me preencheu. Meu sono foi pesado ao ponto de não sonhar com nada, e gostaria de poder permanecer daquela forma para sempre.  

   Mais alguns minutos se passaram até que Abel parasse o carro em frente a um apartamento. Saio do veículo me despedindo deles e olho ao redor. O amanhecer deixa o local silencioso, e pela primeira vez em tempos, um andarilho passa por mim, me ignorando, e seguindo uma mulher que anda rapidamente.  
    Tranco a respiração, à espera de algo, mas a mulher vira a rua, e sua criatura some com ela. Volto a respirar, e percebo como meu coração palpitava rapidamente. Olho ao redor, e então, começo a caminhar ao meu destino.  
   “Bem, hoje é terça, e ainda são cinco da manhã, Rafaela deve estar dormindo, se eu for agora, talvez ela me receba, e eu possa explicar tudo.” 
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     De frente para a porta da garota, meu cérebro parece perceber o quanto essa ideia é egoísta, e insensata, mas o outro lado ignora o pensamento, e apenas bate consecutivamente na porta de madeira desgastada a minha frente. Depois de no mínimo dez batidas seguidas, a porta é aberta bruscamente, e Rafaela surge, vestindo uma blusa longa de ursinho, e um shorts que apenas a ponta é vista.  
   As palavras somem da minha mente naquele momento. O cabelo longo estava bagunçado, e seu rosto minimamente inchado, os olhos dela estavam arregalados para mim, como se eu mesmo fosse um Andarilho.  
    - Desculpe – Antes que eu terminasse a frase, seus braços me cercam e sua boca encontra a minha em um beijo forte.  
    Meu corpo paralisa, e antes que tivesse reação, ela nos separa, e me abraça. 
    - Eu senti tanta sua falta seu idiota. Você e Victor haviam sumido, e ninguém sábia de nada, e meu Deus... Eu fiquei tão preocupada.  
     Seus braços se apertavam ao redor do meu pescoço, e eu precisava me abaixar um pouco para que ela continuasse com os pés no chão. Círculo as mãos por sua cintura, e a aperto mais contra mim.  
     - Desculpe te preocupar, os últimos dias... tem sido uma bagunça. - Digo, sincero sentindo cheiro do seu cabelo.  
     Ela se afasta, limpando o canto dos olhos, e me encara.  
   - O que você está fazendo aqui? - Agora o peso da minha visita a ela, parece ainda maior.  
   Suspiro fundo, e desvio o olhar.  
    - Por alguns motivos, que vou te contar. Não posso dormir na minha casa, e você era minha única opção. - Digo, esperando que seja o suficiente por hora.  
    Ela concorda levemente, e dá espaço para eu entrar.  
    Já estive na casa de Rafaela, em situações completamente diferentes, e continua tudo do mesmo jeito. Organizado, decorado, e com o cheiro dela por todo canto.  
     - Eu vou arrumar o sofá, e pegar uma toalha pra você, e ver se encontro ao menos uma calça. Você está fedendo e parecendo um mendigo, está com uma feição meio morta, como se não se alimentasse a dias, o que houve com você? - Ela me olha, e parece um pouco enojada.  
    - Nossa Rafaela, senti saudade dessa sua sinceridade também. - Digo, pondo a mão sobre o peito, como se fosse chorar.  
     Ela se afasta e eu olho ao redor, sentindo meu corpo pesar.  
    - Aqui. Você já sabe onde fica o chuveiro, não demore muito, eu vou voltar a deitar, pode pegar algo na cozinha se quiser, mas limpe tudo que sujar depois.  
    Ela fica na ponta dos pés ao meu lado, e beija minha bochecha.  
   - Descanse, você parece realmente bem cansado. Pode me contar tudo depois.  

Concordo com a cabeça e ela se afasta, arrumando o pequeno sofá marrom e indo para o quarto. Vejo a toalha e a calça na mão e franzo o cenho, sorrindo.  
    - Minha calça Senhorita Rafaela? 
   Caminho até o chuveiro, tirando a roupa, e me ponto de baixo da água quente, sentindo o líquido lavar meu corpo. A sensação relaxa meus nervos, e quase durmo dentro do próprio Box.  Termino o banho e visto a calça moletom, parando em frente ao espelho para me analisar.  
    Minha aparência estava péssima, e eu realmente parecia meio morto. Eu provavelmente havia perdido peso, e meu rosto estava mais pálido, e fino. Meu cabelo já alcançava os olhos, e minha mãos tremiam bastante. Saindo da cabine, indo em direção a cozinha e abrindo a geladeira, avisto de primeira uma tigela grande lasanha.  
    - Rafaela, se você disser que não estava me esperando, é mentira.  
    Pego a tigela, pronto para comer tudo que não comi nos últimos dias.  
 
    Deito sobre o sobre o sofá macio, e me aconchego, sentindo meu corpo relaxar rápido. Mesmo que a pouco tempo atrás eu estivesse dormindo, não demora muito até eu finalmente fechar os olhos, e apagar.  

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      “- Arthur... onde ele está? - Eu conseguia ouvir a voz da minha mãe, mas não queria ir atrás dela, não queria que ela visse aquela coisa que me seguia.  
    Em baixo da mesa encolhido, eu torci para que nenhum deles me encontrasse. Eu queria ficar lá para sempre, era calmo, e eu não me preocupava com nada.  
    Pensando bem, eu sempre fui assim, do tipo que evitava problemas, do tipo que foge e se esconde, e busca o lugar mais tranquilo pra ficar. Quando as crianças me chamavam para brincar de esconde-esconde, eu nunca ia para lugares apertados, sujos, ou escuro, não. Eu sempre ia para o mais longe possível, e sentava, ou deitava em algum espaço, sabendo que ninguém me encontraria, na época era um dom de se esconder.  
     O problema, é que elas desistiam de procurar e em todas as vezes, eu acabava sozinho, chorando, e querendo que alguém me achasse.  
    Mas ninguém vinha, ninguém nunca aparecia. Quando eu voltava para casa, meus pais estavam desesperados me procurando. Eu sempre fui sozinho, em todas as questões, ninguém nunca sabia exatamente onde eu estava. Por isso sempre foi fácil se esconder, por isso o conforto sempre era o melhor, eu já não aparecia para as pessoas, então, não era tão difícil.  
     
    - Onde ele está! Onde ele está! ... 
    - Apareça filho de Vikfar!” 
 
        Levanto subitamente, ofegante. Meu peito doía, meu corpo estava tremendo.  
      Olho ao redor confuso sobre o local onde estou, e me levanto rápido.  
      - Arthur, está tudo bem? 
     A voz da cozinha atrai minha atenção, e olho em sua direção, vendo Rafaela com uma frigideira na mão, me encarando.  
     Passo os dedos pelo cabelo, sentindo-os húmidos.  
     - Eu... Eu estou bem, sim. - Pisco algumas vezes desnorteado. - Que horas são? - Perguntou confuso.  
    - Duas e meia. - Ela me olha e sorri, voltando a fazer o que fazia antes.  

Concordo então e me sento novamente no sofá, esfregado as mãos no rosto.  
    - Está com fome? Estou fazendo bolinhos de queijo.  
    Minha cabeça ainda parece desnorteada, e meu corpo treme minimante. 
   - Claro, só me deixe lavar o rosto, já me junto a você. 
    Não espero ela responder, apenas sigo até o banheiro, fechando a porta, e respirando fundo.  

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    Estávamos os dois sentados um de frente para o outro em uma mesa redonda.  
    Rafaela havia me dito que pegou o dia de folga hoje, e por isso estava em casa. Também me contou que durante o dia, eu tive fortes espasmos, a ponto de gemer de dor, e mesmo que ela me chamasse eu não acordava, o único motivo para não ter chamado uma ambulância, é porque não duravam mais que alguns segundos.  
    - Eu disse alguma coisa enquanto dormia? - Pergunto, pegando mais um bolinho.  
   - Não que eu tenha escutado. Você só parecia com dor em alguns momentos, me assustou... 
    - Desculpe por isso. - Ela já havia parado de comer a um tempo, apenas mexia no prato a sua frente, e não me olhava.  
     - Tudo bem. 
    Limpo as mãos e a boca, e ela me olha. 
    - Ainda sabe cortar cabelo? - Minha pergunta a surpreende, e eu lhe lanço um sorriso.  

 

     Rafaela estava atrás de mim, uma toalha presa ao meu pescoço, e a água do meu cabelo pingava em meu rosto.  
     - Victor está morto. - É a primeira coisa que digo quando sinto ela pegar a primeira mexa do meu cabelo.  
      Seu corpo paralisa, e ela para o movimento, ambos ficamos em silencio nesse momento, e com os olhos fechados não quero abri-los para ver sua expressão. Já havia cortado o cabelo com Rafaela outras vezes, o pai dela era cabeleireiro, então ela tinha experiencia com isso, não era uma preocupação.  
     - Como? - Ouço sua voz, e sinto a primeira mexa ser cortada.  
    - No dia em que foram lá em casa, havia uma criatura lá. Uma criatura que é mais fácil desenhar do que explicar, e bem, ela estava lá atrás de mim, mas... - Minha frase para, e sinto que ela também parou de cortar. - Victor a atraiu para ele, e essa coisa entrou nele. E meio que o deixou doente, por isso, quando fomos ao bar naquela mesma noite, ele estava tão estranho lembra? Os gritos, ele falando que via algo, aquilo tinha deixado ele doente, e um dos efeitos, é alucinações. - Por algum motivo, eu disfarcei a história, como alguém contaria a uma criança de dez anos curiosa demais.  
     - E essa “coisa”, matou ele? - Sua voz, parecia firme. “Parecia” 
   - Sim. Ele dormiu na minha casa aquela noite, e na manhã seguinte estava morto, os paramédicos tiraram o corpo dele, e o enterro foi algo isolado, aquilo havia destruído o que um dia foi o Victor. Desculpe por mentir para você naquela manhã, estava sendo difícil para mim também. - Abro os olhos, e vejo a janela aberta a qual minha cadeira está virada.  

        “Do mesmo jeito que um pai conta ao filho que o Papai Noel não existe.”

Ouço a garota atrás de mim fungando, e tirando uma das mãos do meu cabelo, levando ao rosto. Ela soluça algumas vezes, e permaneço em silencio, fazendo minha presença desaparecer.  

       - Entendi. E o que houve com você. - Sua voz sai mais falhada dessa vez. 
     Solto uma risada com sua pergunta, e abaixo minimante a cabeça, que ela segura firme e põe no mesmo lugar.  
      - Lembra que eu disse que a criatura estava atrás de mim? Eu tinha que arrumar um jeito de fazer com que elas não viessem mais. Então fui atrás de respostas, mas, não achei uma boa fonte. - Algumas memorias tomam minha mente. - E por isso, tive que me esconder. Depois disso, novamente, tentei procurar respostas, mas não achei, e outra fonte errada me pegou. E quando vi, eu estava no oceano pacifico. - Paro de falar, e solto uma risada sem graça. - Sabia que o porto de Ayora fica a quase quatorze horas de Costa Rica? - Pergunto por fim.  
      Ela tira a toalha do meu pescoço, e passa para a minha frente. Seus olhos estão minimante vermelhos, e sua feição é triste.  
    - Isso não faz o menor sentido Arthur.  
    Desvio os olhos dos seus, sabendo muito bem que meu conto de fadas não faz sentindo para ela. No fundo, eu sabia que não havia outra forma de explicar, a não ser expor ela a toda esse mundo que eu mesmo estava fugindo.  
   Rafaela segura novamente meu rosto, o pondo para cima, e pegando uma mecha de cabelo.  
    - Eu sei que é algo mais complicado, e posso perceber que você não quer me incluir nisso. Mas não posso te ajudar, se não sei com o que estou lidando.  
    Suas mãos bagunçam meus cabelos tirando os fios cortados, e seus olhos voltam para os meus.  
    - Agora parece uma pessoa de verdade. - Ela sorri minimamente. 
    Me levanto da cadeira, perto demais dela, que não se afasta. Minhas mãos vão até sua cintura a segurando.  
      - Eu não preciso de ajuda, então você não tem que saber a verdade. - Seus olhos lacrimejam, e ela concorda levemente com a cabeça, o queixo tremendo devagar.  
     Levo uma das mãos até o local, o segurando com gentileza e trazendo seu rosto em minha direção.  Aproximo minha boca da sua, sentindo seu hálito quente tocar contra meus lábios.  
      - Apenas, esteja comigo, já é o suficiente. - Não espero sua resposta e junto nossos lábios em um beijo lento. 

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    Não consigo descansar depois de tudo.  
    Rafaela estava com o rosto deitado sobre meu peito, dormindo tranquilamente. As sensações de tudo ainda eram fortes em minha pele, e realmente relaxou meus nervos. 
    Já eram seis horas, e o dia estava começando a ir embora. Eu ainda não tenho planos sobre o que fazer, e que decisão devo tomar. Por enquanto, sei que aqui é impossível me acharem.  
    Subitamente, sinto um arrepio, e olho para o canto do quarto, sentindo meus membros travarem automaticamente.  
     Eu já transei com um Andarilho me olhando, agora um Perseguidor é dez vezes mais bizarro. Rafaela parece perceber minha agitação, e levanta a cabeça, coçando os olhos.  

- Arthur, está tudo bem? - Sua voz é sonolenta. 
     Minha voz não sai, e eu apenas a abraço mais forte, vendo os olhos daquela coisa irem para ela.  
     - Não diga nada.  
     Ela franze a testa sem entender, e concorda. O som repentino do celular dela tocando chama nossa atenção, e antes que eu pudesse impedir, ela se vira para pega-lo.  
   - Rafaela, não! - A criatura sem hesitar se lança contra ela, e eu jogo meu corpo contra o seu ao mesmo tempo a cobrindo, mas aquilo passa por mim e a atinge.  
    Ela fecha os olhos com força, e põe a mãe sobre o peito.  
    - Arthur... - Sua voz sai fraca, e um líquido preto começa a escorrer da sua boca, e de seus olhos.  
   - Rafaela... - O desespero começa a me tomar, e deito ela sobre a cama novamente. Meus dedos tremem e sinto lágrimas descerem meu rosto.  
     - Tá... doendo... - Não seguro os soluços, e a abraço forte.  
    - Me desculpa Rafa, por favor... - Meu choro é violento contra seus cabelos. - Me desculpa... eu fui tão egoísta com você... 
    Sua voz não sai mais, e o cheiro forte de podridão toma o quarto. Me afasto do seu corpo, que parece agonizar em dor, e um misto de raiva e tristeza me toma.  
    - Para com isso... Ela não... por favor... - Eu não sabia a quem implorava, mas no momento, senti que era a única coisa que podia fazer. - Porra para! Caralho, ela, ela não merece morrer assim! - Encostei em seu corpo que já não se mexia mais, e vi uma lágrima solitária escorrer pelo canto do rosto, e se misturando com a gosma negra na cama.  
      As lágrimas param de descer do meu rosto, e eu me levanto, deixando-a para trás. Saindo do quarto, o cheiro do seu shampoo enche minhas narinas, e o aperto no peito volta. Eu sabia que ele já estava atrás de mim, e sábia para onde ele iria me levar, mas nesse momento, eu iria pôr um fim naquilo.  
   Chego na cozinha, abrindo a gaveta de talheres, e pegando uma faca de carne de lá, me virando então e o olhando.  
   - Você me quer, não é? É eu que você quer, o filho de Vikafar, que você não pode machucar. - Digo, sentindo meu corpo queimar em raiva, então levanto a faca e aponto para meu peito. - Você matou meus únicos amigos, tirou minha vida de minha. Agora, eu vou tirar a minha vida de você.  
   Sem pensar muito, forço a faca contra meu peito, sentindo uma dor ardente e aguda me penetrar, e meus olhos ficarem turvos. Continuo forçando o objeto pontudo o mais fundo que posso até sentir o gosto ferroso do sangue em minha boca, e meus braços perderem as forças.  
    Aquela criatura ainda me olhava, como se não entendesse meu ato, como se não soubesse que aquilo estava tirando a minha vida. A que tanto zelei para ser pacífica, para sem ampla, e sem muito estresse. A vida que queria mostrar para o garoto de cinco anos de idade, que morria me medo das grandes criaturas que ele via, que se escondia sempre que podia. O garotinho que não pedia ajuda a ninguém, que ficou isolado por meses por ser considerado louco, a criança que começou a mentir cedo demais, para não assustar todos a sua volta.  
    Eu estava tirando a vida dele, estava tirando a oportunidade dele de viver, e ser feliz. 
    Antes que minhas pernas falhassem, eu levanto meu braço, mostrando o dedo do meio para aquilo a minha frente, e então, toda a minha vida passa pelos meus olhos.  
    Sinto uma lágrima solitária escorrer, e tudo escurece, exatamente como os mais velhos diziam que seriam a morte, exatamente como aquela psicóloga me respondeu.  
     “- Como será que é morrer?  
    Já fazia um tempo que estávamos conversando, e essa pergunta me veio à mente.  

- Há bem, eu acredito que seja como dormir, você deita em uma cama confortável e só dorme, tudo escurece e você não sente mais nada. - Ela sorri quando termina de falar e eu concordo.  
   - Porque a pergunta? - Balança os ombros, e viro os olhos.  
   - Tomara que seja assim. - Digo por fim. Ela levanta e caminha até a porta, segurando a maçaneta, a sessão havia acabado. 
    - A vida é misericordiosa com os que precisam.  

    - Eu não preciso de misericórdia... - Digo, indo em sua direção de braços cruzados.  
    - Ninguém deveria precisar, até a próxima sessão Arthur. - Ela acena para mim, e vejo meus pais me esperando no final do corredor, viro meus olhos para ela antes de ir.  
    - Se eu morrer, volto para te contar como foi. - Minha fala a surpreende, e então viro de costas e sigo até minha mãe que me esperava de braços abertos.” 
      É como dormir sim doutora, como entrar em um leve sono que você sabe que não vai acordar, e essa se torna a melhor parte.  

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