Babys.

Sinal. (Capítulo 1)

 Sinal. 

Capítulo 1. 

O som incessante do despertador fazia minha cabeça latejar, abrindo os olhos lentamente observo que ele ainda continua lá, no mesmo lugar sem se mover, me encarando. 

Já fazia duas semanas que eu havia criado um andarilho depois de uma briga que tive por telefone com meu pai, não cheguei exatamente a sentir raiva, mas como essas criaturas parecem muito mais aguçadas a mim, a mínima alteração de voz já é o suficiente para que a nevoa preta suba pelos meus pés e personifique o sentimento. 

Me sento na cama pegando o aparelho que ainda toca uma música repetitiva qualquer e vejo o brilho indicando “06:50” na tela, me avisando que daqui a trinta minutos preciso estar do outro lado da cidade para passar as próximas seis horas servindo pessoas em um restaurante meia boca num bairro de classe baixa. 

Estico meu corpo ao me levantar, e encaro novamente a sombra escura a alguns metros de mim. Sem qualquer reação, eu me aproximo dela, e estico meu braço para tocar seu corpo fantasmagórico, e já sabendo o que aconteceria vejo o membro sumir entre a fumaça preta, atravessando ao outro lado sem dissipar aquilo. Balanço de um lado para o outro como se tentasse espantar uma mosca, e nada acontece. Retiro então a mão e me viro, seguindo em direção ao banheiro, e sabendo que aquilo estava logo atrás de mim. 

Tomo um banho, e faça minhas necessidades ainda sendo observado. 

Enquanto procuro meu crachá, meu telefone novamente desperta avisando que dessa vez faltam quinze minutos para meu horário começar, e antes que eu se quer pudesse tomar qualquer atitude, sinto o baque nas minhas cotas, o tremor nas minhas pernas, e sei que significa que o andarilho voltou para dentro de mim. Automaticamente o sangue sai pela minha boca, tusso com força, e vejo o líquido vermelho sujar o chão. 

Caio de costas na cama e minha visão embaça, sinto minha cabeça girar, e o gosto de ferro infestando minha boca. Meu corpo formiga, e tento controlar a respiração para que a sensação passe mais rápido e meu corpo volte a funcionar. 

Não sei dizer quantos minutos se passam até que eu conseguisse estabilizar minha cabeça e fazer os tremores diminuírem. Quando me sento novamente, vejo o sangue já parcialmente seco no chão, e limpo a boca com as costas da mão, sujando-a também. 

Pego o celular, e o horário indica cinco minutos restantes, fazendo com que minha cabeça doa um pouco mais.  

Volto ao banheiro, enxáguo a boca, e saio de casa. 

Ao menos, não precisarei me preocupar com ele.” 

. 

. 

. 

Entro pela parte dos fundos do estabelecimento, e bato o ponto. 

Cheguei dez minutos atrasados, e já estou ciente de que isso me trará alguma dor de cabeça depois.  

Pego meu avental e o amarro na cintura, puxo a manga de minha camisa social preta até a altura dos cotovelos e vou para a sala de funcionários.  

  - Olha quem resolveu aparecer. 

Seu braço passa pelos meus ombros, e não preciso olhar para saber que se trata de Victor. Nos conhecemos  três anos, quando comecei a trabalhar aqui e ele me ensinou como funcionava o serviço, Victor é um universitário com a mesma idade que eu, tem cabelos loiros e uns cinco centímetros a mais de altura. 

  - Muito engraçado você. - Guardo meu capacete e minha mochila no armário e a tranco, coloco o crachá e me viro para ele. 

  - Dez minutos, sorte sua que a chefe não virá hoje, mas torça para que a capanga dela não descubra. - Com “capanga” ele está se referindo a outra colega nossa.  

Rafaela era a gerente do lugar quando minha chefe não está, o que causava um incômodo a todos pela sua forma rigorosa de ser. Muitas das vezes, meus puxões de orelha aconteciam por algo que ela avia contado aos superiores.  

  - Você sabe que ela me ama, relaxa. - Digo ajeitando o avental na cintura, podia ouvir a cozinha funcionando, e os outros atendentes arrumando o salão.  

Ele cruza os braços na minha frente, e se afasta até a porta. 

  - Dormiram juntos uma vez, e ela finge que nem aconteceu. - Sua fala me traz à lembrança desse dia, e meu cérebro foca especialmente no fato de que enquanto estávamos juntos, avia um andarilho no canto do quarto nos observando.  

   - De qualquer forma, estou aqui não estou? - Me aproximo dele na porta, e dou um sorriso me divertindo com a conversa. 

Ele solta uma risada e empurra a porta com a mão. 

   - É está sim.  

Quando olhamos para frente, Rafaela está nos encarando de braços cruzados e feição seria, como se pudesse nos matar somente com os olhos. 

   - Já acabaram de bater papo? - Posso ver a nuvem escura se formar em seus pés, e sei que um andarilho ira surgir de sua raiva. Passo os olhos pelo restaurante a procura de mais algum, e avisto a sombra atrás de um dos atendentes recém contratado.  

Prendo a respiração, e foco naquilo. 

Merda, se ela fazer com que mais um surja, eles podem colidir.” 

  Me aproximo então do seu corpo, Rafaela é uns quinze centímetros menores que eu, tem 21 anos, o cabelo longo preto preso em um rabo de cavalo, os olhos escuros firmes, o corpo bem delineado. Ela não é o tempo todo assim, já a vi chorar, rir, e conversar alegremente, já tivemos um caso no passado, e sei que como ela é incrível.  

Coloco uma mão em cada braço seu, e me aproximo do seu rosto, notando que sua postura impecável não se abala. Posso notar que suas bochechas avermelham levemente, e seus braços se apertam mais contra os seis, o que deixa a blusa preta ainda mais justa em seu corpo. 

   - Rafa, desculpe, eu acabei chegando um pouco atrasado, foi mal, faço hora extra no sábado o que acha? - Sorrio em sua direção, e posso ver seus olhos relaxarem levemente. Desvio minimamente o olhar para o chão, e vejo a sombra ir sumindo aos poucos, relaxo mais o rosto e faço um leve carinho em seus braços com os dedos. 

   - Você sempre faz isso Arthur, não pode continuar assim. - Ela me olha, seus olhos transmitem tristeza, e a sombra volta a aparecer. 

Porra!” 

   - Vamos lá Rafa, desculpe, eu estou aqui agora, não estou? - Repito a mesma frase que disse meu amigo há alguns minutos. Ela suspira e se afasta do meu toque. 

   - Não se atrase de novo. - Seus olhos não transmitem mais aquilo, respiro aliviado ao ver que a nevoa sumiu completamente.  

Volto meus olhos para o andarilho ao lado do atendente, e coço a nuca. Olho para meu amigo novamente e o vejo de braços cruzados me encarando. 

  - O quê? 

   - Não sei dizer se você só tem um bom papo, ou se ainda continuam dormindo juntos para ela deixar passar um atraso seu. - Ele questiona enquanto caminha até o salão. 

   - Eu gostaria de responde que é a segunda opção, mas, na verdade, eu sou só ótimo de papo, e ela não disse que deixou passar. - Vejo Rafaela seguir em direção aos fundos e observo seu caminho. 

    - Tanto faz, enfim, você é responsável pela bebida hoje. - Victor se vira, e caminha me deixando para trás com aquela informação. 

    - Você tá de sacanagem né? - Grito para ele que não se dá ao trabalho de olhar para mim. 

    - Olhe o mural! - Grita de novo, e caminho a passos largos até o quadro com os serviços do dia, e vejo meu nome preso na coluna de bebidas. 

Respiro pesadamente, tentando ao máximo impedir com que aquele sentimento me domine e outro andarilho surja. Mesmo que meus companheiros sombrios ignorem os outros, a ideia de mais uma daquelas coisas voltarem para dentro de mim faz meu corpo tremer. 

Massageio a cabeça e caminho em direção a cozinha, verificar se a mais algum deles por aqui além do companheiro do atendente. Comprimento todos os cozinheiros, e confirmo que está seguro. Quando volto ao salão vejo o rapaz conversar com outros colegas, aquela coisa a um metro de distância de seu corpo o encara fixamente.   

Suspiro, e me posiciono atrás do balcão. A tarefa de bebidas é a pior para ficar, basicamente, o seu trabalho é servir toda e qualquer tipo de bebida para os clientes. É um trabalho estressante que te exige muita calma. Já perdi a conta de quantos andarilhos já surgiram de mim enquanto servia aqui. 

Em contrapartida, é um bom local para eu bloquear sentimentos ruins, e aprender a manuseá-los 

Arrumo os copos e todos os objetos pelo balcão, limpando a madeira e espanando as garrafas. Olho o relógio e o horário indica que faltam quinze minutos para abrir. 

Me sento na banqueta disponível, deixando os braços sobre o balcão e encarando a criatura negra ao longe. 

  - Não gostou do novato? - Victor para ao meu lado, e também se encosta sobre o balcão para observar na mesma direção. 

  - Não tenho opinião sobre, não conversei com ele ainda. - Digo, realmente nem sei o nome do garoto que parece um pouco mais novo que eu. 

  - Sábado trocamos algumas palavras, ele é muito moleque ainda, e mal sabe carregar uma bandeja com mais de dois copos. - Seu comentário faz eu analisar o garoto, seu cabelo é cortado de modo degrade, usa uma calça cargo e uma blusa preta normal. Ele interage facilmente com os outros dois atendentes a sua frente, o avental é grande demais para seu corpo fazendo com que o pano desça até um pouco abaixo dos joelhos.  

Bocejo pelo sono, e deito a cabeça sobre o balcão.  

   - Desde que não faça confusão, por mim ele pode levar um copo por vez. - Fecho os olhos, meu corpo relaxa e sinto uma pontada de sono me atingir.   

   - Não mime o garoto, ele precisa aprender. - Ouço a voz de Victor, ainda de olhos fechados e balanço a cabeça em concordância.  

   - O trabalho nem começou e Arthur já está assim?  

Levanto o rosto e vejo Camilla a minha frente, ao seu lado está Eduardo e atrás de seu ombro se encontra o garoto novo, com seu perseguidor ao lado. 

    - Camilla, é sempre bom ouvir sua voz. - Ela me olha e sorri. Camila é mexicana, com 22 anos tem a pele bronzeada e os cabelos ondulados e castanhos presos em uma longa trança, trabalha aqui dois anos, é simpática com todos e muito bem humorada. Seu corpo é belíssimo e por experiência própria sei que ela beija muito bem. O único problema é que não sou o único do restaurante que sabe.  

A regata preta justa no corpo quase joga seus seios para fora quando ela se inclina no balcão aproximando o rosto do meu. 

   - É sempre bom contar com sua presença no restaurante. - Seu sorriso aumenta, e ela me lança uma piscada, sorrio de volta e vejo Eduardo balançar a cabeça. 

   - Parem com isso vocês dois, a uma criança aqui. - Ele diz, e aponta para o garoto em suas costas que nos encara confuso. 

Eduardo é o membro mais velho da loja, está aqui  6 anos desde que o restaurante foi fundado. Tem 36 anos, e é como o pai da casa, mima todos os atendentes e puxa nossa orelha quando precisa, ele tem um porte grande o fazendo parecer um lenhador maromba, com uma barba que cobre metade do rosto ele lembra um urso. É também o único que usa uma blusa social branca ao invés de uma preta.  

    - Aí Eduardo, o menino é crescido, não precisa disso. - Camilla fala, revirando os olhos e cruzando os braços. 

Viro meu rosto na direção do garoto que sorri sem graça, o andarilho atrás dele o observa sem falha, seus olhos cinzas não se movimentam ou pelo menos não deveriam. Vejo o movimento leve das pupilas saindo das costas do garoto e virarem em minha direção. 

Sinto meu corpo frio, e minhas mãos começarem a tremer, ele me encara fixamente, como se eu o tivesse criado. Andarilhos não deveriam fazer isso, eles não costumam mudar seu foco de visão, nunca presenciei algo assim.  

   - Arthur? Está tudo bem? Você ficou pálido do nada - Não mexo o rosto, mas sei que é Victor quem diz isso.  

De repente aquilo vem contra mim, do mesmo jeito que fazem os que eu evoco. Ele entra em mim e sou derrubado do banco, minhas cosas batem contra o chão e sinto sangue subir minha garganta, me viro de lado, e tusso o líquido. 

   - Dios mio! - Camilla grita, e posso ver Victor se abaixar ao meu lado. 

Minha cabeça gira novamente, e meu corpo treme, estou apavorado, isso nunca aconteceu, nunca ouve um momento em que um andarilho de outra pessoa entrou em mim.   

   - Arthur, você está bem?! Arthur?! 

Minha audição está embaralhada, mal vejo as pessoas, a minha frente, escuto muitas vozes, meu corpo treme, e minha mente borbulha com pensamentos sobre o que aconteceu.  

Tudo vai se apagando, e então já não sinto mais nada, então desmaio.  

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